Como a tendência antissocial e a delinquência estão relacionadas ao desenvolvimento emocional e à criatividade da criança: principais manifestações em ambos os casos.
Por Margarida Maria Vicchietti
Em meio à Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1941, Winnicott, juntamente com outros autores, escreveu artigo e orientou o Governo inglês, sobre os perigos do plano de evacuação de crianças, que tinha por objetivo protegê-las dos perigos dos bombardeios por meio da separação delas de suas famílias em abrigos, alojamentos ou mesmo lares substitutos. Winnicott (2005) afirmava que por vezes, as crianças não acordavam com o estrondo das bombas, e que perder os cheiros característicos de seu ambiente familiar era tão ou mais prejudicial que o barulho das bombas. A ausência da segurança da unidade familiar, teria efeitos sobre o desenvolvimento emocional e acarretaria danos à personalidade e ao caráter (Winnicott, [1941] 2005).
Essas falhas, quando ocorrem no momento em que a criança já tem noções de EU e NÃO EU, e em tempo insuficiente para que se retenha a lembrança do objeto e das experiências vivenciadas, caracterizam o que se chama de deprivação. A criança é capaz de perceber que a falha é do ambiente e ela então transgride contra o social, na tentativa de recuperar o que lhe foi retirado. É fundamental aqui, definir deprivação como algo que uma criança ou adolescente tinha e perdeu, num tempo emocional indevido, que não lhe permitiu elaborar e sublimar tal perda. A perda é sentida como algo roubado, tomado, perdido. Já na privação, a criança foi impossibilitada de ter.
Quando o indivíduo se volta contra o social, ele está inconscientemente buscando no ambiente o que lhe pertencia. Há nestas condutas antissociais a esperança de reencontrar simbolicamente aquilo que se perdeu, e desta forma poder retomar o desenvolvimento emocional de maturacional. A esperança, aliás, seria um divisor de águas entre o AGIR antissocial e a INDENTIFICAÇÃO com o SER da identidade infratora, que seria, sem a esperança de recuperar o que se perdeu, a única forma de SER e EXISTIR do indivíduo (RENTES, 2022). Para Winnicott (2005), na delinquência já existem defesas constituídas, com ganhos secundários, que não permitem à criança entrar em contato com a sua desilusão inicial.
Portanto, o AGIR antissocial, em seus estágios iniciais, não seria propriamente uma doença, mas antes um pedido de socorro. Segundo Winnicott, a tendência antissocial não é uma categoria, mas sim um distúrbio psíquico, relacionado a dificuldades inerentes ao desenvolvimento emocional, podendo vir acompanhado às psicoses, às depressões ou às neuroses.
A tendência antissocial não é um diagnóstico. Não se pode compará-la, diretamente, com outros tipos de diagnósticos, tais como neurose ou psicose. Pode ser encontrada tanto em indivíduos normais quanto em neuróticos ou psicóticos. (Winnicott, 1958c p. 408)
Algumas das manifestações clínicas seriam: gula, perversões, furtos e mentiras. A avidez é outra manifestação, que pode ser explicada como a busca compulsiva no ambiente daquilo que lhe foi retirado. No extremo, a destrutividade e a psicopatia.
Roubos, urinar na cama, falta de asseio, podem estar relacionados a deprivações oriundas da relação com a figura materna. “A criança que rouba é uma criança em busca da mãe, ou da pessoa de quem ela tem o direito de roubar” (Winnicott, 1947a p.185) Já manifestações de destrutividade, que demandem reações de demonstração de autoridade, podem estar relacionadas às deprivações oriundas das relações com a figura paterna. Na tendência antissocial, há segundo Winnicott, a necessidade da criança encontrar um pai rigoroso e forte.
Mas como explicar aos pais e professores que roubos e agressões não teriam as explicações lógicas que os pequenos infratores são obrigados a dar, quando a sociedade age na direção da punição. As explicações lógicas das crianças e adolescentes infratores, não expressa a verdadeira etiologia da perturbação, já as reações da sociedade são na direção da moralidade e da punição, o que piora a percepção do meio, e não possibilita à criança ou ao jovem a retomada de seu processo de desenvolvimento psíquico natural e saudável. Desta forma, as deprivações começam com a figura materna, e se estendem e são mantidas pelo meio e pela sociedade.
A psicoterapia, é eficaz nos primeiros estágios das manifestações antissociais, na recuperação e recriação do SER e EXISTIR. Mas quando o indivíduo perde a esperança de recuperar do meio o que perdeu resta-lhe a identificação com as práticas infratoras, com a única possibilidade de um EXISTIR. Nesta fase, o indivíduo tem ganhos secundários com suas condutas em conflito com a lei e dificilmente aceitará ajuda. O objetivo da terapia é chegar ao trauma original de deprivação. O paciente deve retornar “através do trauma da transferência ao estado de coisas que existia antes do trauma original” (WINNICOTT, 1987, p. 253).
Referências
RENTES, R. Os meninos de Heliópolis: o ser e fazer de adolescentes em conflito com a lei e a sintomática criminal. 1ª edição. Curitiba: Editora Appris, 2022. P 105 – 118.
EIZERIK, C.L.; AGUIAR, R.W.; SCHESTATSKY, S.S. Psicoterapia de Orientação Analítica: fundamentos teóricos e clínicos. 3ª edição. Porto Alegre: Editora Artmed, 2015.
WINNICOTT, D. W. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
1958c [1956]. A tendência antissocial. In Winnicott (1984a), Deprivation and Delinquency. Londres: Tavistock Publications Ltd. Trad. bras., Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
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